quarta-feira, 26 de março de 2014

Histórias com mortos

Era noite e ia a pé. Junto ao metro, os taxistas esperavam com os seus carros parados em fila. Cada um, um planeta isolado. A maioria lia. Alguns conversaram ao telefone, outros aproveitavam a aberta para mijar ali por perto, no jardim. Estava aquele tempo - o meu tempo. Chuva e calor. Olhei para cima. A luz laranja dos postes pintava um céu da cor do fogo. Por entre as chamas estava sozinha a lua.

Acendeu-se um cigarro.

Quem me ensinou a travar foi a Amália. Devia ter eu uns treze ou catorze anos. Ela era uma raposa mais velha. Esperta, sorrateira. Até ali, raramente tínhamos falado. Foi a primeira vez que a vi verdadeiramente sem se esconder por detrás das ervas. Sei que ficámos sozinhos por um bocado. Estava frio e estávamos a aquecer as pernas ao lume. Era esta altura do ano. Chovia lá fora e da porta vinha constantemente uma corrente de ar fresco. Encolhia-me.

Começou a falar sobre quando era jovem.
Ainda ali nova, a sua cara tinha já um ar trágico. Imaginei-a - a pele; E pensei nos seus cabelos anos atrás, mais claros. A Amália partiu da escola cedo - não tinha jeito. Encerrou esse capítulo de olhos firmes nas chamas. Daí começou a tentar lembrar-se da primeira vez que tinha fumado um cigarro - com umas colegas da escola - numa tarde qualquer, perdida nos anos oitenta.

Tirou o tabaco do bolso e olhou para mim.

A primeira vez que meti um cigarro na boca, engasguei-me. Fumava com elas, mas deixava o ar na boca - com medo de ficar embaraçada novamente. Foi assim até mais tarde. Lembro-me bem. Só aprendi, depois de estar a cantar numa festa. Um rapaz ensinou-me. 

E as paredes entoaram a sua voz, já gasta:

De manhã, que medo, que me achasses feia!
Acordei tremendo, deitada na areia,
Mas logo os teus olhos disseram que não,
E o sol penetrou no meu coração.

Vi depois, numa rocha, uma cruz, 
E o teu barco negro dançava na luz
Vi teu braço acenando, entre as velas já soltas
Dizem as velhas da praia, que não voltas

Assim, acendeu um cigarro.
Fechou os olhos. E eu tive um íntimo e vivo sentir, daquela que era a sua profunda tristeza. A Amália inspirou firmemente, como se aquele fosse o último tomo de ar que alguma vez iria prender. E senti que lhe tocava nas raízes. Os seus olhos eram calor.

Expirei. Ali, à noite, trouxe novamente o cigarro à boca e inspirei.
Fechei os olhos e deixei que o lancinante fumo se apoderasse de mim.
Olhei para cima e vi agora uma estrela.
Pensei que talvez por pena de mim, brilhava sozinha.